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Leitura da Política Global Climática

Máquina de guerra e linha de fuga

Por Jorge Aziz em 14/03/2025 às 09:18:15

Uma leitura da política global do financiamento climático à luz das teses de Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, permite uma abordagem rizomática e esquizoanalítica do problema, destacando as múltiplas conexões, linhas de fuga e agenciamentos que estão em jogo nessa conjuntura.

1. O Negacionismo Climático como Máquina de Captura

Deleuze e Guattari descrevem o funcionamento das máquinas de captura do Estado e do capital, que operam por meio de sobrecodificação e estratificação das forças sociais. O recrudescimento do negacionismo climático e o desmonte do financiamento ambiental podem ser entendidos como um movimento dessas máquinas de captura, que buscam reterritorializar o debate climático dentro de uma lógica de poder e interesse econômico.

A volta de Trump ao poder exemplifica isso claramente: seu governo age como uma máquina de captura que neutraliza fluxos de financiamento climático ao reterritorializá-los no setor militar e energético tradicional (petróleo, carvão e gás). Essa ação bloqueia linhas de fuga que poderiam conduzir a novas formas de organização socioeconômica, como o financiamento climático solidário ou a transição para energias renováveis.

O Reino Unido e os países europeus seguem um movimento semelhante, cortando financiamento climático em nome da defesa e da estabilidade econômica. O que vemos, então, é uma atualização da lógica de Estado descrita por Deleuze e Guattari, na qual o aparelho estatal funciona como uma máquina de guerra que reestrutura os fluxos financeiros e discursivos para preservar sua própria reprodução.

2. Os Fluxos Financeiros e a Desterritorialização do Clima

O financiamento climático global pode ser analisado como um fluxo desterritorializado, que tenta escapar da lógica tradicional do capitalismo de Estado, criando novas conexões e redes de apoio entre nações, ONGs e organizações supranacionais. No entanto, esses fluxos encontram barreiras cada vez mais rígidas, como as criadas pelos governos dos EUA e do Reino Unido.

O recuo nos compromissos financeiros ilustra um processo de reterritorialização: o capital que antes era direcionado para a mitigação climática agora é redirecionado para outras formas de investimento, muitas vezes reforçando estruturas já estabelecidas, como o complexo militar-industrial. Essa transformação revela a capacidade do capitalismo de se adaptar e bloquear movimentos de fuga, um tema central na crítica esquizoanalítica de Deleuze e Guattari.

Ao mesmo tempo, as economias emergentes do Sul Global, como apontado pela primeira-ministra de Barbados, tentam criar novas linhas de fuga, alternativas ao financiamento do Norte Global. Isso se alinha com o conceito de "agenciamentos coletivos de enunciação", onde novos sujeitos políticos (como coalizões do Sul Global) tentam afirmar sua potência dentro do sistema mundial. No entanto, o desafio é superar as codificações e capturas impostas pelos antigos centros hegemônicos.

3. A Multiplicidade das Linhas de Fuga

Apesar do quadro pessimista, há fissuras no sistema que indicam a possibilidade de novas linhas de fuga. As críticas de organizações como a 350.org e as discussões sobre o financiamento climático no Sul Global são exemplos de tentativas de romper com o modelo tradicional de dependência financeira dos países desenvolvidos.

Esses movimentos podem ser entendidos como linhas de fuga que se conectam em um rizoma – um sistema não hierárquico, descentralizado e múltiplo. A proposta de Mia Mottley de criar redes de apoio entre países em desenvolvimento pode ser vista como uma tentativa de estabelecer um novo agenciamento, fora da lógica dos Estados-nação hegemônicos.

No entanto, Deleuze e Guattari alertam que nem toda linha de fuga é necessariamente emancipatória. Algumas podem ser capturadas ou transformadas em novos sistemas de controle. O desafio para as nações emergentes será construir mecanismos que resistam à reterritorialização e mantenham uma lógica de financiamento verdadeiramente descentralizada e colaborativa.

4. Entre Captura e Liberação

O desmonte do financiamento climático pelos países ricos é um exemplo claro do funcionamento das máquinas de captura do Estado e do capital. No entanto, a resistência a esse processo ainda está em curso, com tentativas de novas articulações no Sul Global. Se esses esforços resultarão em um novo modelo de financiamento climático descentralizado ou serão reabsorvidos pelo sistema dominante é uma questão em aberto.

Enquanto isso, o governo brasileiro, ao mesmo tempo que se apresenta como líder ambiental global, mantém uma postura ambígua ao sustentar interesses ligados à exploração de petróleo, especialmente na Margem Equatorial. Essa dualidade pode ser vista como um exemplo do que Deleuze e Guattari chamam de máquina de captura, onde fluxos aparentemente distintos (sustentabilidade e exploração de combustíveis fósseis) são integrados em um mesmo processo de sobrecodificação pelo Estado.

O discurso "discreto" de Marina Silva e a postura do Planalto em relação ao petróleo na foz do Amazonas exemplificam esse movimento de captura. O governo opera dentro de uma lógica de reterritorialização, na qual o Brasil busca se consolidar como potência ambiental sem abandonar sua base econômica ancorada nos combustíveis fósseis. Essa estratégia permite que diferentes setores do governo se articulem sem necessariamente gerar rupturas internas: enquanto Marina Silva mantém um discurso de transição energética, figuras como Alexandre Silveira e Gleisi Hoffmann garantem que os interesses da indústria do petróleo sejam preservados.

5. O Segmento Empresarial e a Linha de Fuga do Greenwashing

Do lado empresarial, há uma tentativa de se posicionar estrategicamente na COP30 sem abandonar práticas tradicionais de exploração. O setor corporativo brasileiro tem adotado um discurso de sustentabilidade e transição energética, mas, na prática, continua investindo em infraestrutura para a exploração de combustíveis fósseis, seguindo uma lógica de duplo vínculo (double bind), na qual a transição energética é defendida ao mesmo tempo em que o modelo fóssil se perpetua.

Empresas do setor energético e financeiro utilizam a COP30 como um espaço de reterritorialização do capital verde, promovendo soluções como créditos de carbono e energias renováveis sem romper com a lógica de expansão da produção de petróleo e gás. Esse movimento pode ser entendido como uma linha de fuga ilusória, pois dá a aparência de mudança sem efetivamente romper com as estruturas que perpetuam a crise climática.

Ao invés de uma verdadeira desterritorialização, onde novos modelos econômicos sustentáveis emergiriam, o que se vê é uma reconfiguração dos fluxos de capital para manter o poder das corporações e do Estado. O mercado de carbono, por exemplo, é um exemplo claro de como o capitalismo incorpora a crítica ambiental e a transforma em uma nova forma de especulação financeira, sem necessariamente reduzir as emissões globais.


6. O Governo Brasileiro e a Estratégia da Ambiguidade

A postura do governo brasileiro pode ser interpretada como um agenciamento tático, onde diferentes forças se articulam para garantir a manutenção de espaços de negociação tanto no cenário ambiental quanto no energético. Essa estratégia de ambiguidade permite que o Brasil:

• Se apresente como líder climático no cenário internacional, reforçando sua posição no G20 e na ONU;

• Evite embates diretos com setores econômicos estratégicos, como a Petrobras e a indústria do petróleo;

• Mantenha sua influência sobre os países do Sul Global, que dependem do Brasil para barganhar melhores condições de financiamento climático.

Essa abordagem está alinhada com a lógica da máquina de guerra estatal, na qual o governo opera não para resolver a crise climática, mas para negociar os termos da sua participação dentro do sistema global. Em vez de romper com a dependência dos combustíveis fósseis, o Brasil busca flexibilizar o discurso para atender tanto às demandas ambientais quanto aos interesses empresariais.


7. As Linhas de Fuga Possíveis

Apesar dessa captura dos fluxos de financiamento climático e da transição energética pelo Estado e pelo setor empresarial, existem potenciais linhas de fuga que podem emergir dentro da COP30. Movimentos ambientalistas, redes de pesquisa e atores do Sul Global podem articular novas formas de organização que escapem da lógica de sobrecodificação imposta pelo sistema financeiro e pelo lobby dos combustíveis fósseis.

Por exemplo, a proposta de Mia Mottley, primeira-ministra de Barbados, para um novo modelo de financiamento climático liderado pelos países em desenvolvimento pode ser um indício de uma desterritorialização real. Se esses países conseguirem criar novos mecanismos de cooperação climática fora da dependência das potências do Norte, pode-se abrir um novo espaço para uma transição energética mais justa e descentralizada.

8. Conclusão

Entretanto, como Deleuze e Guattari alertam, as linhas de fuga podem ser reapropriadas e transformadas em novos mecanismos de controle. O desafio será impedir que as soluções climáticas emergentes sejam absorvidas pelo sistema financeiro global e utilizadas apenas como novas formas de especulação e concentração de poder.

A análise de Deleuze e Guattari nos ajuda a enxergar essas dinâmicas de poder não como estruturas fixas, mas como fluxos mutáveis, nos quais há sempre possibilidades de resistência e reinvenção. O desafio é encontrar e sustentar as linhas de fuga que permitam a criação de uma nova ecologia política, onde o financiamento climático não seja apenas uma concessão dos países ricos, mas um processo rizomático e coletivo de transformação global.

Fonte: Citada no corpo do texto

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