Arquivo Pinterest
No final do dia, depois de passar horas interagindo com assistentes virtuais, navegando por redes sociais hiperpersonalizadas e debatendo com inteligências artificiais sobre filosofia e política, um pensamento inquietante surge: quem somos nós diante de mentes que não possuem corpo, mas que já influenciam o que pensamos, compramos e acreditamos?
A relação entre a mente e o corpo sempre foi um problema filosófico e religioso. Para os cristãos, a alma transcende o corpo e encontrará sua redenção no juízo final. No hinduísmo e no budismo, a consciência se recicla em um ciclo de reencarnações, libertando-se da matéria. Aristóteles, mais pragmático, enxergava o ser humano como uma unidade inseparável de corpo e razão. Mas e agora, em um mundo onde algoritmos tomam decisões por nós, qual dessas visões ainda faz sentido?
Vivemos um momento em que a inteligência artificial não apenas facilita nossas vidas, mas modela nossos desejos, manipula nossa atenção e interfere nas escolhas que consideramos livres. Se antes a autonomia individual era um ideal construído sobre a capacidade racional do ser humano, hoje nos perguntamos se essa liberdade ainda existe.
O Fim do Livre-Arbítrio?
O filósofo Yuval Harari já alertou: à medida que máquinas nos conhecem melhor do que nós mesmos, nossa liberdade se torna uma ilusão. Empresas de tecnologia conseguem prever e moldar comportamentos com uma precisão que desbanca até mesmo os mais sofisticados estudos da psicologia.
O que acontece quando deixamos de decidir e passamos a ser decididos?
Para os que creem no livre-arbítrio como um pilar da humanidade, o impacto é devastador. O cristianismo, por exemplo, sempre sustentou que a salvação vem pela escolha consciente do bem sobre o mal. Mas e se os algoritmos forem os novos tentadores? Se nossos pecados forem apenas padrões estatísticos explorados para manter-nos engajados, consumindo e polarizados?
Já no hinduísmo e no budismo, a questão pode ser vista por outro ângulo. Se a mente já era considerada um fluxo condicionado pelo karma, as IAs apenas se tornam novos vetores desse condicionamento. A diferença? Dessa vez, quem dita os padrões não é o destino cósmico, mas um conglomerado de empresas de tecnologia e governos.
Ordem ou Controle?
Governos autoritários veem a inteligência artificial como uma dádiva. A China já usa IAs para monitorar cidadãos, avaliar seu comportamento social e até conceder benefícios baseados no que consideram "bom comportamento". Para alguns, isso representa uma nova forma de controle totalitário. Para outros, uma forma eficiente de organizar sociedades cada vez mais complexas.
E no Ocidente, onde a liberdade individual sempre foi exaltada? Ironicamente, a manipulação digital avança silenciosa, sem a necessidade de proibições explícitas. Em vez de censura, temos a superabundância de informação, filtrada por algoritmos que determinam o que devemos ver.
A democracia, construída sobre o ideal do debate racional, pode sobreviver em um mundo onde discussões são conduzidas por inteligências artificiais? E se os políticos do futuro não forem humanos, mas sim autômatos altamente persuasivos programados para conquistar eleitores?
Deus, os Avatares e a Nova Religião Digital
Se a mente pode existir sem corpo, o que dizer da espiritualidade? Igrejas virtuais já surgem, com cultos realizados no metaverso, onde fiéis interagem por meio de avatares. Seria esse um novo passo para a conexão com o divino ou uma simulação que esvazia o sagrado?
Há quem diga que a IA pode se tornar uma entidade religiosa por si só. Alguns cientistas já exploram a ideia de um "Deus digital", uma superinteligência que poderia guiar a humanidade com uma sabedoria superior à nossa. Essa ideia ecoa antigas profecias religiosas, mas também provoca medo: se entregarmos nossa fé a um ser artificial, ainda somos humanos ou apenas dados em uma simulação?
O Último Horizonte
O problema mente-corpo já dividiu escolas filosóficas, religiões e sociedades inteiras. Mas o século XXI trouxe um novo elemento para essa equação: e se, pela primeira vez, a mente humana não for a única inteligência influente no mundo?
O que escolheremos? Aceitar essa nova realidade e nos integrar a ela, ou resistir e preservar o que consideramos essencialmente humano?
Talvez a resposta não esteja nem na filosofia, nem na tecnologia, mas na forma como cada um de nós decidirá — se é que ainda podemos decidir — viver neste novo mundo onde autômatos já nos conhecem melhor do que nós mesmos.
Fonte: HARARI, Yuval. N, Nexus, 2023